The New York Times
Este foi um verão (no hemisfério norte) em que as mulheres se libertaram —principalmente de seus guarda-roupas. A nudez em nossas telas tem sido tema de conversas constantes há meses, da provocante estreia da série “The Idol”, em junho, à nudez esquerdista de “Oppenheimer” (e o estrago que ela causou em alguns relacionamentos pessoais, como um vídeo do TikTok que se tornou sucesso viral pode atestar).
Em cada um dos casos, o tema, de uma forma ou de outra, parece ser a libertação: não necessariamente aquela proposta por Simone de Beauvoir, mas a libertação de uma personagem feminina de algum tipo de confinamento, seja social, cultural ou pessoal, e a nudez deveria servir como reflexo disso.
A depender do contexto da história, da intenção do diretor, da perspectiva da obra ou da execução da tomada, uma cena de nudez pode servir como demonstração sucinta da liberdade física ou espiritual recém-descoberta de um personagem, ou até mesmo de um avanço emocional ou psicológico. Ou pode ser só mais um caso de a indústria do entretenimento usar o corpo de uma mulher por seu valor de choque.
O que se segue é um levantamento repleto de “spoilers” sobre cenas de nudez mais gratuitas e inesquecíveis deste verão nos Estados Unidos, e uma análise de quais delas conseguiram mostrar a forma feminina com razão e intenção, como algo mais do que um mero colírio.
NUDEZ CONSTANTE SIGNIFICA UMA NOITE DE TELEVISÃO INSATISFATÓRIA
O contexto: Em “The Idol”, uma jovem estrela pop chamada Jocelyn (Lily-Rose Depp), sentindo-se artisticamente frustrada e enfrentando um colapso nervoso, prospera sob a tutela de um misterioso dono de casa noturna chamado Tedros (Abel Tesfaye, também conhecido como The Weeknd), que está tentando transformar um grupo de talentosas aspirantes a estrelas em figuras cult.
A cena: É difícil escolher apenas uma cena de nudez nesse programa de televisão desastroso, porque Jocelyn vive em estado perene de nudez parcial. Nos primeiros minutos do primeiro episódio, vemos Jocelyn em um roupão vermelho de seda aberto, durante uma sessão de fotos, discutindo com o coordenador de intimidade sobre a decisão dela de fazer a sessão com os seios visíveis.
Ao menosprezar o trabalho do coordenador de intimidade, a cena parece ter menos a ver com a construção de Jocelyn como personagem do que com a série fincar sua bandeira no enlameado território da televisão de escândalo. A insistência de Jocelyn em fazer a sessão de fotos sem se cobrir tem a intenção de ilustrar que ela é uma mulher liberada, totalmente responsável por sua sexualidade, seu corpo e sua imagem. Mas “The Idol” nunca define o que pensa sobre seus próprios personagens, nem o que eles querem ou o que fazer com eles.
Uma das perguntas predominantes sobre a série, entre os espectadores, era: será que devemos acreditar que Jocelyn é realmente talentosa? Não está claro se o programa considera sua protagonista como uma verdadeira artista ou uma vendedora inepta, mas iludida, de quinquilharias para o mercado de massa. Da mesma forma, não sabemos que grau de controle Jocelyn realmente exerce. Sua submissão a Tedros parece indicar que está sendo manipulada. Portanto, as escolhas diárias de guarda-roupa por Jocelyn —que nunca parecem incluir roupas de casa largas para dias de inchaço ou pijamas confortáveis de algodão para relaxar no sofá— parecem ter menos a ver com sua autoimagem e liberdade do que com o fato de ela estar confinada —por seu público e pelas pessoas que a cercam— a uma prisão de objetificação, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Mas perto de seu final a série traz uma virada abrupta para chegar a uma conclusão, propondo que, afinal, o cérebro maligno que dita a história talvez fosse o de Jocelyn. Da mesma forma que a série não pode ter ao mesmo tempo uma estrelinha séria e dócil e uma operadora clandestina ardilosa, ela não pode retratar uma celebridade que ao mesmo tempo desfruta de total poder de ação mas sente uma obsessão por satisfazer a todos em suas ideias de como ela deve ser e o que ela representa como artista. De qualquer forma, com o cancelamento do programa, parece que a carreira de Jocelyn está morta para sempre, e não há Tedros para revivê-la.
PANCADARIA NUA REDUZ A IMPORTÂNCIA DA SEXUALIDADE
O contexto: Em “Que Horas Eu Te Pego?”, Maddie (Jennifer Lawrence), uma mulher de 30 e poucos anos, grossa, desajeitada, avessa a relacionamentos e passando por apertos financeiros, responde a um anúncio de um casal rico que procura uma mulher para namorar e deflorar seu filho de 19 anos, Percy (Andrew Barth Feldman). As tentativas de Maddie de seduzir o adolescente neurótico e inseguro são repetidamente frustradas das maneiras mais ridículas, mas no processo Maddie e Percy criam uma conexão real.
A cena: Certa noite, quando Maddie e o relutante Percy vão nadar nus na praia, alguns valentões tentam roubar suas coisas. Maddie sai da água em um nu frontal sem disfarces, e isso leva a uma sequência de briga que com certeza não deve ser assistida no computador do escritório.
Nesse momento, “Que Horas eu Te Pego?” se apropria de um elemento de estilo clássico das comédias românticas —o mergulho sexy e improvisado após um encontro— e o esvazia de toda sedução, optando pela comédia física absurda. A cena, que inclui um impressionante soco na virilha, funciona por conta da dedicação de Lawrence a esse candidato juvenil (e um tantinho repelente) à categoria “comédia de sexo atrevida”, entre os filmes B esquecíveis.
O trabalho de câmera é respeitoso, prático, sem qualquer indício de um olhar persistente. O corpo de Lawrence não é o objeto da cena, mas um instrumento para a comédia. Sua sexualidade é incidental; ela espanca os intrusos da praia com tamanha intensidade que a violência solapa seu esforço para expressar desejo por Percy.
MIRANDA MERECIA MAIS
O contexto: Na segunda temporada de “And Just Like That…”, a continuação de “Sex and the City”, Miranda (Cynthia Nixon) luta para manter seus relacionamentos desgastados com a família enquanto descobre como definir sua identidade sexual.
A cena: Apesar de seu precursor revolucionário e ousado, “And Just Like That…” parece não conseguir descobrir como inserir seus personagens em um novo mundo de sexo, relacionamentos e encontros. A série também adota uma abordagem mais discreta em suas representações de sexo —o que torna as duas cenas de nudez frontal de Miranda no episódio um especialmente surpreendentes.
Miranda é uma personagem muito amada pelos fãs de “Sex and the City”, e muitos deles a veem codificada como gay –o mesmo se aplica a Nixon, que tem falado abertamente sobre sua própria jornada para se assumir—, e na continuação da série ela descobre uma nova dimensão de sua sexualidade quando conhece Che (Sara Ramirez), uma comediante queer não binária.
Na primeira cena de nudez, parte de uma montagem de sexo que abre a temporada, Miranda é a única integrante do elenco que é exposta, mostrada nua da barriga para cima em uma piscina com Che. A princípio, a montagem parece colocar o romance queer em pé de igualdade com os romances heterossexuais cisgênero, mas o momento de nudez parece indicar que “And Just Like That…” está pedindo atenção especial, quase autocongratulatória, para Miranda e Che.
No entanto, Miranda tem dificuldades para se ajustar a um novo relacionamento, uma nova sexualidade e um novo estilo de vida, o que é exemplificado pela segunda cena, em que Miranda experimenta o tanque de privação sensorial de Che. Incapaz de relaxar, Miranda entra em pânico e sai do tanque aos tropeços, cambaleando nua. É uma representação da metáfora do peixe fora d’água que se estende a outra cena do episódio, que a mostra no quarto com Che lutando para usar um brinquedo sexual. Naquela cena, Miranda serve para fazer comédia incidental.
A trajetória de Miranda tem sido a menos indulgente da série, já que sua jornada de autodescoberta lhe custa relacionamentos e, nessas e em outras cenas de nudez, dignidade. A nascente liberação sexual de Miranda é explicitamente definida por gafes e ingenuidade. Para um programa que tem como objetivo representar mulheres —e, em especial, mulheres de meia-idade— com corpos, origens e orientações sexuais mais diversificados do que “Sex and the City” incluía, “And Just Like That…” infelizmente usa o corpo de uma mulher mais velha como piada.
UMA TATUAGEM BEM POSICIONADA PODE RENDER OURO CÔMICO
O contexto: Em “Loucas em Apuros”, Audrey (Ashley Park), uma advogada americana de origem asiática criada por pais brancos, vai à China em uma viagem de negócios que, graças a suas amigas Lolo (Sherry Cola), Kat (Stephanie Hsu) e Deadeye (Sabrina Wu), se transforma em férias malucas repletas de sexo, drogas e desventuras. Em uma de suas incursões, Audrey se vê no meio de um trio com dois belos jogadores de basquete. Em outra, um acidente de figurino revela a tatuagem genital secreta de Kat.
A cena: O charme do filme está em grande parte em sua dedicação ao gênero de história de amigas que partem juntas para uma aventura selvagem. Portanto, até mesmo as configurações estereotipadas e a resolução emocional telegrafada são divertidas, dada a liberdade que as personagens —e as atrizes que as interpretam— têm para mostrar o absurdo do filme. Um dos temas recorrentes na história é a importância de ser fiel a si mesmo, e as cenas de nudez se alinham perfeitamente com essa ideia.
A jornada emocional de Audrey gira em torno de sua falta de vontade de conhecer sua mãe biológica e de se conectar com sua cultura. As amigas zombam dela pela rigidez e pelo racismo incorporado e fora de controle —a confiança instintiva que ela demonstra por uma mulher branca e loira, em vez de alguém que se parece com ela; sua indiferença em relação à comida e às tradições de sua cultura; seu histórico infame de namoro com homens asiáticos. Portanto, quando ela dorme com dois atletas asiáticos atraentes, é seu momento de libertação, no qual ela pode se soltar sexualmente e se sentir aberta para abraçar —literal e figurativamente– o seu lado asiático.
Da mesma forma, o momento de nudez de Kat —revelando a cabeça gigante de demônio que recobre toda a sua vulva— é o ponto alto de uma carpintaria clássica e bem ordenada que remonta às primeiras cenas do filme, quando Audrey deixa escapar para Lolo que Kat tem uma tatuagem genital. As perguntas vulgares de Lolo e suas teorias sobre a arte privativa de Kat, juntamente com a revelação de que Kat finge ser uma virgem casta em seu relacionamento com seu noivo muito cristão, intensificam a tensão cômica.
Quando suas partes baixas decoradas pela tatuagem aparecem, é uma surpresa, mas não uma surpresa sexy. O detalhe espalhafatoso do rosto do demônio —e a mudança para uma visão “interna”, com a câmera mostrando os outras três amigas espiando a vagina dela— eleva a comédia do filme a níveis absurdos sem parecer desnecessariamente sexualizada ou exploradora.
UM HOMEM MOSTRA SEU BRILHANTISMO, E UMA MULHER BRILHANTE MOSTRA SEU CORPO
O contexto: Em “Oppenheimer”, o papel-título (Cillian Murphy), do pai da bomba atômica, é visto pelas lentes de sua pesquisa, de sua posição política em evolução e de seus assuntos pessoais –entre os quais um romance com Jean Tatlock (Florence Pugh)—, de seus dias de escola até seu papel como diretor científico do Projeto Manhattan e o descrédito público em que ele recai depois de uma audiência de segurança em 1954.
A cena: Ainda que de muitas maneiras “Oppenheimer” seja bem-sucedido como filme, da cinematografia e atuações à narrativa, o trabalho também comete um pecado cinematográfico fundamental: não só subutiliza uma grande atriz como Pugh, mas também objetifica descaradamente a personagem dela em cenas de nudez injustificadas.
Na primeira cena de Pugh, Jean e Oppenheimer se encontram e trocam gracejos, como se para mostrar que ela é uma adversária intelectual digna e, portanto, uma amante digna para o homem-gênio. Depois de algumas magras linhas de diálogo, Jean aparece nua, cavalgando Oppenheimer em seu quarto enquanto o instrui a traduzir uma cópia do “Bhagavad Gita”.
Ele traduz: “Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”, transformando a cena imediatamente em um recurso de estilo misógino usado com frequência excessiva em histórias sobre gênios masculinos. Jean não é uma pensadora brilhante e de postura política ousada; não é uma personagem com sua própria história e agência. Termina reduzida a um corpo e a uma inspiração para um homem brilhante.
Na segunda cena de nudez de Pugh, quando Tatlock convence Oppenheimer a tirar uma pequena licença do Projeto Manhattan para passar a noite com ela em um hotel, ela serve como personificação da tentação. A paixão de Tatlock por Oppenheimer e a recusa final dele em continuar o caso ajudam o filme a criar a imagem de um homem que é desejado não apenas por seu cérebro, mas também por seu corpo.
Mas o mais imperdoável é a última aparição de Jean nua, imaginada pela mulher de Oppenheimer, Kitty (Emily Blunt), durante a audiência do cientista. A única informação nova que a cena pretende transmitir é a reação de Kitty à linha de questionamento adotada pelo conselho quanto ao caso de Oppenheimer com Jean. Mas a atuação de Blunt —a dureza em seus olhos, a expressão clara de desdém e constrangimento— nos diz tudo o que precisamos saber sobre sua reação emocional.
Aqui, o filme mais uma vez apaga a personalidade de Jean; ela existe quase que puramente dentro da imaginação de Oppenheimer e de sua mulher, que, assim como Jean, é subestimada pelo roteiro. Jean é uma nota de rodapé que surge sem roupas em uma história sobre um cara inteligente com quem ela dormiu algumas vezes. Que mulher invejaria isso?
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: Folha de SP
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