Nos últimos dias a misoginia voltou para os holofotes no Brasil. Um sujeito capilarmente deficiente fez uma exposição muito pública de seu total desprezo pelas mulheres, deixando de lado bom senso, civilidade, vergonha e… bom, e o pacote completo.
Embora a figura tenha encontrado a mais completa humilhação pública, o fato de o assunto ter sido posto mais uma vez na roda mostra que a discussão acerca não só dos direitos, mas do tratamento indigno sofrido historicamente pelas mulheres, encontra-se léguas longe do fim.
Nesse sentido, “Entre Mulheres” é um lançamento não só oportuno, como eu diria até didático. A diretora Sarah Polley, conduzindo aqui uma adaptação do livro de Miriam Toews, constrói uma alegoria sobre opressão feminina levada ao extremo.
Ao lado de uma busca por soluções, caminham lado a lado o pragmatismo, o conformismo e a compreensível vontade de simplesmente cravar um machado no crânio de seus algozes. Quando as luzes se acendem, consideramos se não seria essa a decisão mais racional.
Em uma colônia religiosa separada da civilização, no que parece ser o século 19 mas que por fim se revela em 2010, as mulheres são impedidas de estudar, de aprender a ler ou escrever, de conhecer o mundo para além dos limites do lugar, e de erguer a cabeça para seus pais, maridos, irmãos, filhos ou amigos.
A ignorância e o fanatismo religioso surgem como desculpa para mulheres que acordam, depois de dopadas, com marcas de agressão e sinais de estupro. A gravidez é inevitável, e uma colônia de crianças de muitos pais prospera em meio a homens abusadores e mulheres caladas pela força da violência.
Quando duas meninas identificam um de seus algozes, ele entrega seus comparsas e o grupo é finalmente preso, os homens partem em bando para pagar a fiança e tirar os estupradores da prisão. As mulheres, deixadas para trás com a orientação de perdoar os abusadores, decidem agir para promover uma guinada radical em suas vidas.
Tópicos em uma cartilha
A ação concentra-se, então, em um pequeno grupo, em poucas famílias que vão ponderar os acontecimentos e escolher um curso de ação: como a passividade foi descartada, elas precisam optar por ficar e enfrentar seus algozes ou, coletivamente, abandonar a colônia antes do retorno dos homens.
Em um celeiro, Sarah Polley conduz exatamente o que o título original do filme apregoa: são “mulheres conversando”, até o cair da noite, colocando todos os prós e contras de suas opções. Os vértices da questão concentram-se em Ona (Rooney Mara), a mais racional do grupo, Mariche (Jessie Buckley), que ainda hesita em deixar a colônia, e Salome (Claire Foy), esta com a certeza que, se permanecer, se tornará uma assassina.
“Entre Mulheres” é um filme tecnicamente difícil, desafio que Sarah Polley contorna com precisão e delicadeza. A diretora conta com performances poderosas de suas atrizes para superar algumas lacunas dramáticas em seu roteiro. Por vezes há também uma certa falta de sutileza ao apresentar as opções do grupo, e um subsequente plano de ação, como tópicos em uma cartilha.
Seu maior pecado, entretanto, é um personagem que parece sobrar. Ben Whishaw é August, professor dos meninos da colônia e, como um aliado da causa das mulheres, voluntaria-se para registrar o encontro. Ele é amável, empático e hesita em se fazer ouvir.
Causa estranheza, portanto, em um filme escrito e dirigido por uma mulher, concebido e conduzido por mulheres, tematicamente tão entrelaçado em questões femininas, fazer de um homem uma espécie de voz da razão, a quem elas constantemente buscam orientação em um momento tão delicado.
Para piorar, “Entre Mulheres” sugere uma trama paralela romântica entre August e Ona, uma linha narrativa sobre amores não correspondidos que simplesmente parece pertencer a outro filme. A solução é canhestra, e a interpretação fora de tom de Whishaw não ajuda a entender seu lugar no filme.
Sofrimento invisível
É uma anomalia dramática que ameaça tirar a história tecida por Sarah Polley dos trilhos, o que só não acontece pela força bruta da trama principal e de suas implicações quando refletidas no mundo contemporâneo – ou melhor, no mundo do lado de cá.
“Entre Mulheres” termina por provocar uma discussão necessária sobre abuso e violência, bem como sobre suas motivações religiosas e sociais. Como alegoria, é um relato imperfeito, ainda que poderoso, sobre o sofrimento muitas vezes invisível, entrelaçado com uma mistura injusta de culpa e responsabilidade, que testemunhamos todos os dias sem precisar de uma tela de cinema.
Fonte: UOL Cinema