“Para todos os meninos e meninas que se parecem comigo, este é um bastião de esperança e possibilidades”, disse Michelle Yeoh ao se tornar a primeira asiática a ganhar o Oscar de melhor atriz. “Sonhos são algo em que você precisa acreditar. Eu quase desisti do meu”, emocionou-se Ke Huy Quan ao receber o prêmio de melhor ator coadjuvante quase 40 anos após sua estreia no cinema.
Eu já fui uma menina que se parece com a Michelle Yeoh. E, assim como Ke Huy Quan, integrei o elenco de uma produção audiovisual infanto-juvenil décadas atrás. Mas, diferentemente deles, eu desisti. Pelo mesmo motivo que fez Yeoh Choo Kheng se tornar Michelle Yeoh, Ke Huy Quan sumir das telas após estrelar clássicos como “Os Goonies”, e boa parte do público e da crítica abominar “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”.
O “hate” recebido pelo filme é apenas um sintoma da rejeição do Ocidente a tudo que é considerado “estrangeiro”. Embora a vitória de “Parasita” como Melhor Filme em 2020 tenha sido amplamente celebrada, a reação à premiação deste ano mostra que, para além da categoria melhor filme internacional, a presença de asiáticos só é permitida se corresponde ao estereótipo desenhado no imaginário da hegemonia branca e eurocêntrica.
Em outras palavras, o que incomodou os haters foi o fato de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” ser muito mais que um mero retrato realista de imigrantes sofredores.
Desacostumada a lidar com novidades reais, grande parte da crítica e do público tratou de se agarrar aos únicos elementos que foram capazes de identificar: o multiverso, que rendeu comparações a “Matrix” e outros do gênero, e a montagem frenética, que atribuiu à linguagem do TikTok.
Mas tem um detalhe de que a maioria não se dá conta: diferentemente do sul-coreano “Parasita”, “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” não é um filme asiático feito por asiáticos com atores asiáticos falando um idioma asiático. É um filme americano feito por americanos descendentes de imigrantes asiáticos (Daniel Kwan) e europeus (Daniel Scheinert) com atores de ascendências diversas falando idiomas ocidentais e asiáticos.
E só quem é sabe que não há nada mais asiático-americano do que se apropriar dos estereótipos do imaginário ocidental (como os filmes de kung fu que, até pouco tempo atrás, eram os únicos que garantiam empregabilidade a atores amarelos) e misturá-los com clichês hollywoodianos (e ideias que só poderiam ter saído da cabeça dos Daniels) de forma frenética o bastante para “disfarçar” um dos pontos principais do “everything bagel” que é esse filme: a dificuldade que diferentes gerações de famílias imigrantes asiáticas têm de se comunicar e, sobretudo, demonstrar afeto —do patriarca tradicionalista à sua neta lésbica ocidentalizada que sequer sabe falar o idioma de seus antepassados.
Se a premiação histórica de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” é um sinal de que Hollywood está tão perdida que embarca em qualquer canoa, que esta seja como o barco que deu início à jornada do vietnamita Ke Huy Quan do campo de refugiados à realização de seu sonho americano no palco mais importante de Hollywood.
E que, diferentemente de mim, outros meninos e meninas que se parecem com Michelle Yeoh sintam-se mais confiantes para correr atrás de seus sonhos.
Afinal, como diz o Waymond Alfa ao explicar a Evelyn o algoritmo que torna toda aquela loucura possível, “as menores decisões podem gerar diferenças significativas ao longo da vida”. A escolha da Academia de consagrar “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” como o filme mais premiado da história do Oscar é uma delas.
Fonte: UOL Cinema
winter jazz