Londres
The New York Times
Tínhamos nos encontrado para um café há apenas alguns minutos, no segundo trimestre de 2022, quando Brett Goldstein decidiu mostrar alguma coisa em seu celular.
Eu me aproximei dele e, na telinha, vi operadores de marionetes sentados em skates, aparentemente extasiados, rolando pelo chão com os corpos escondidos por trás de uma mesa, enquanto suas mãos manipulavam uma tropa inteira de gatos de feltro por cima de suas cabeças. Para Goldstein, aquilo representava uma espécie de ideal de criatividade, a mais pura expressão de diversão, técnica artística e alegria desenfreada que qualquer ser humano será capaz de encontrar.
“Imagine que esse é o seu verdadeiro trabalho”, ele comentou, erguendo as impecáveis sobrancelhas com um ar de espanto.
Goldstein estava me mostrando um vídeo de bastidores gravado durante sua passagem como convidado por “Vila Sésamo”, uma experiência que esse ator e roteirista premiado com o Emmy, e agora astro de filmes da Marvel, ainda descreve como o melhor dia de sua vida.
O vídeo é inegavelmente encantador, mas não é o tipo de trabalho com que Goldstein precisaria sonhar. Como estrela de “Ted Lasso”, uma série de humor de muito sucesso sobre um treinador americano de futebol, atrapalhado mas eternamente otimista, que conquista corações, mentes e ocasionais títulos de futebol na Inglaterra, ele faz parte do elenco que confere ao programa um calor humano, otimismo e simpatia dignos daqueles que o personagem principal da série, Ted Lasso, interpretado por Jason Sudeikis, leva à tela.
“Vou ficar completamente arrasado quando a série terminar”, disse Goldstein no ano passado. “Acho que todos nós ficaremos.”
E agora acabou. Ou talvez ainda não. O que é certo é que a nova temporada de “Ted Lasso”, que estreou na quarta-feira (15), vai concluir a história em três atos que os criadores da série conceberam no início, e não há planos para estendê-la. Determinar se novas histórias do universo de Lasso podem surgir depende de Sudeikis, que me disse que ainda nem tinha começado a pensar sobre o assunto. “Vem sendo um trabalho de muito amor, mas mesmo assim é muito trabalho”, ele afirmou.
Portanto, mesmo que a nova temporada não seja o fim, ela representa um fim, e isso causou um baque forte para Goldstein. Em uma conversa por vídeo no mês passado, ele confirmou que, enquanto filmava o episódio final, em novembro, saía do set de vez em quando “para chorar um pouco”.
Mas mesmo que “Ted Lasso” tenha acabado de vez, também é indiscutível que Goldstein aproveitou ao máximo a oportunidade que a série lhe deu. É bem provável que, três anos atrás, você nunca tivesse ouvido falar dele –um ator nada famoso selecionado para uma série de TV baseada em um personagem de comercial da NBC Sports e exibida por um serviço de streaming, o Apple TV+, que poucas pessoas tinham (a humanidade tinha muito mais em que pensar, em março de 2020).
Mas as coisas progrediram rapidamente para ele desde que “Ted Lasso” se tornou a história positiva mais notória da era do streaming, tanto em termos de formato –uma saga esportiva sobre perdedores e sobre a importância da gentileza– quanto de função, quando a série se tornou um sucesso inesperado que deu impulso às carreiras de um grupo de atores adoráveis, anteriormente não muito elogiados, que agora acumularam 14 indicações ao Emmy por suas atuações.
Mas nenhum de seus colegas fez de “Ted Lasso” uma plataforma de lançamento tão proeminente quanto Goldstein. Seu personagem, Roy Kent, um jogador aposentado, áspero e extremamente boca-suja que se torna treinador, se transformou em favorito imediato dos fãs, e Goldstein ganhou Emmys como melhor ator coadjuvante em uma comédia pelas duas temporadas anteriores da série. Ele também é um dos roteiristas do programa, e aproveitou seu sucesso para desenvolver um novo projeto, “Shrinking”, uma série de humor sobre luto e amizade que Goldstein desenvolveu-a com Bill Lawrence, outro dos criadores de “Ted Lasso”, e Jason Segel, que estrela o programa em companhia de Harrison Ford (é o primeiro papel regular de Ford em uma comédia de TV).
Graças a “Shrinking”, que saiu em janeiro e acaba de ser renovada para mais uma temporada, pode ser que você tenha visto Goldstein em Late Night With Stephen Colbert, The Today Show, CBS Saturday Morning ou algum podcast ou outro.
E graças à sua estreia surpresa como Hércules —Hércules!–em uma cena pós-letreiros em “Thor: Amor e Trovão”, “blockbuster” da Marvel em 2022, Goldstein em breve será visto em todo lugar.
Nenhum desses programas e filmes tinha saído quando conversamos, no ano passado. Naquela altura, ele ainda estava batalhando para compreender de que maneira “Ted Lasso” tinha mudado a sua vida, depois de duas décadas de trabalho relativamente obscuro no teatro e nas trincheiras da comédia em Londres. Apesar do incômodo causado pela perda do anonimato, ele disse, os benefícios que surgiram foram mais que suficientes para compensar —a participação em “Vila Sésamo”, a oportunidade de trabalhar com um herói de infância como Ford e a sorte de trabalhar em “Ted Lasso”.
“É algo que eu faria com gosto por mais 25 anos”, ele disse, mas isso é algo que não lhe cabe decidir.
O que Goldstein pode controlar é o que ele faz com a influência que veio a adquirir em Hollywood, que resultou, até agora, em uma segunda temporada para “Shrinking”, outros conceitos em desenvolvimento para a TV, e o que quer que surja de toda essa coisa de Hércules (ele já adquiriu o maior dos superpoderes dos heróis da Marvel: o de responder “sem comentário”).
Não importa por quanto tempo essa janela de oportunidade se mantenha aberta, Goldstein continua a perseguir a mesma coisa simples: uma versão ligeiramente mais rude daquilo que ele capturou no vídeo de “Vila Sésamo” que me mostrou.
“É um bando de adultos se divertindo como nunca se divertiram na vida, e sendo muito, muito bobos, mas também criando algo de significativo”, disse Goldstein. “E é uma experiência alegre”, ele disse, acrescentando um palavrão.
OK, talvez uma versão significativamente mais rude. Mas para compreender o motivo, ajuda saber um pouco sobre como chegou ele aqui.
“EU ME RELACIONO MUITO COM A RAIVA”
Goldstein, 42, cresceu em Sutton, Inglaterra, e é maluco por futebol por herança genética —seu pai é torcedor fanático do Tottenham Hotspur. Ele se tornou igualmente obcecado pela atuação e pelo cinema, e quando era menino passava horas recriando as acrobacias de Indiana Jones no jardim de sua casa.
Improvavelmente, todos estes fatores contribuíram para as suas circunstâncias atuais: foi seu amor pela atuação e pelo futebol que o levaram a “Ted Lasso” e, agora, ele está escrevendo diálogos para Indiana Jones em pessoa em “Shrinking” –diálogos que Ford diz ao interpretar um personagem inspirado pelo pai de Goldstein.
Mas Goldstein levou algumas décadas para chegar a uma posição tão exaltada. Depois de uma infância passada trabalhando em pequenas peças de teatro e em curtas-metragens de terror que ele mesmo dirigia, ele estudou cinema e literatura na Universidade de Warwick. Continuou a escrever e a atuar durante a universidade e, mais tarde, em curtas e “montes de peças no Edinburgh Fringe e no teatro bem, bem, bem longe do West End”, ele disse. Um curta-metragem, “SuperBob”, sobre um melancólico super-herói meio cambaio interpretado por Goldstein sem barba, acabou por conduzir a um longa-metragem cult com o mesmo nome.
O mais importante resultado disso é que o filme chamou a atenção do diretor de elenco de “Derek” (2012-2014), uma comédia sentimental de Ricky Gervais sobre um simplório bondoso (interpretado por Gervais) que trabalha em uma casa de repouso para idosos. “Aquele foi o meu primeiro trabalho na televisão e, depois, as coisas ficaram ligeiramente mais fáceis”, disse Goldstein.
Ao longo do caminho, ele tentou fazer humor stand-up, e isso se tornou uma obsessão permanente —mesmo hoje, ele tenta subir ao palco diversas noites por semana. “Ele sempre foi o cara sensual e atraente, em círculos humorísticos realmente minúsculos”, disse Phil Dunster, que interpreta Jamie Tartt, um jogador vaidoso que está tentando se emendar, em “Ted Lasso”, e conhece Goldstein há cerca de uma década, desde que atuou em uma das peças do colega (Dunster lembra que ficou deslumbrado e se sentiu intimidado pelas sobrancelhas dele).
A certa altura, um fã do stand-up de Goldstein o mencionou a Lawrence, criador de séries de sucesso para redes de TV americana, como “Spin City” e “Scrubs”, que viu o trabalho do ator em um piloto de série fracassado e se impressionou o bastante para lhe oferecer um papel em sua nova série, em 2017.
A série tampouco foi ao ar. Àquela altura, Goldstein já estava perto dos 40 anos. “Tive uma espécie de epifania, de que tinha perdido minha oportunidade”, ele disse. E aí surgiu “Ted Lasso”.
Os criadores da série, que também incluem Brendan Hunt e Joe Kelly, queriam alguns torcedores de futebol inglês na equipe do programa, e Lawrence pensou em Goldstein. Ele foi contratado como roteirista, mas logo se convenceu de que era o cara certo para fazer o papel de Roy Kent, um futebolista ranzinza, em fim de carreira. Quando a redação dos roteiros da primeira temporada estava sendo finalizada, ele gravou um vídeo em que interpretava diversas cenas de Roy e o enviou aos criadores da série, estabelecendo que, se eles achassem que o trabalho dele era horrível, nunca mais deveriam falar do assunto. Mas ele não era horrível.
É uma história que ele já contou muitas vezes. Mas ecoa de maneira diferente em uma conversa em pessoa, à medida que aquele interlocutor gentil, em sua camiseta preta justa, relata a conexão profunda que sentiu com o irascível Roy. O rosto é essencialmente o mesmo, mas os olhos são amistosos demais, e a voz é suave e melíflua, enquanto a de Roy é um grunhido seco.
“Entendo que isso talvez seja difícil de perceber”, disse Goldstein, colocando a xícara de café no pires. “Mas eu me relaciono muito com a raiva. Costumava me sentir muito, muito miserável, e tinha um cérebro bastante sombrio; estou trabalhando muito para mudar isso. Mas é algo que está lá”.
Lawrence disse que “de todas as séries que já fiz, Brett é uma das duas pessoas mais diferentes do personagem que interpreta” —a segunda é Ken Jenkins, o amigável ator que interpretava o cáustico Dr. Kelso em “Scrubs”.
Em alguns aspectos, a ligação entre ator e personagem é clara. Ambos usam palavrões profusamente, para começar, e Goldstein tem como lema o grito de guerra que define seu personagem: “Ele está aqui, ele está lá, ele está em todo lugar.”
Colegas e amigos ficam espantados com o quanto ele trabalha. Enquanto filmava a primeira temporada de “Ted Lasso”, ele viajava a Madri frequentemente para gravar “Soulmates”, uma série de ficção científica que Goldstein criou com Will Bridges. Durante as filmagens da temporada três, ele atuava em “Ted Lasso” durante o dia e à noite colaborava com os roteiristas de “Shrinking” por videoconferência. Encontrava tempo para entrevistar comediantes, atores, cineastas e amigos para “Films to be Buried With”, um podcast que produz há muito tempo. E sempre dava um jeito de se apresentar nas casas de stand-up.
“Não sei bem quando ele dorme”, disse Dunster. “Mas sei que dorme, porque parece tão jovem.”
Goldstein disse sempre trabalhou muito, mesmo antes de se tornar influente em Hollywood. “Até quando fazia coisas que ninguém assistia, eu trabalhava sem parar”, ele disse. “Isso quer dizer que ou sou doente da cabeça ou isso é o que genuinamente me dá propósito e me faz feliz.”
Ele reconheceu que as duas coisas podem ser verdade. Mas a verdade é que, se “Ted Lasso” nos ensinou alguma algo, é que ninguém é uma coisa só.
“NÓS ENFRENTAMOS ESSAS SITUAÇÕES POR MEIO DO HUMOR”
“Ted Lasso” é uma tapeçaria humorística criada com base em personagens –uma dona de equipe magoada (interpretada por Hannah Waddingham), uma agente de imprensa insegura (Juno Temple), um antigo protegido rancoroso (Nick Mohammed)– que estão em busca de versões melhores de si mesmos. A nova temporada encontra o elenco do AFC Richmond em seu momento mais desfavorável: de volta à poderosa Premier League inglesa e destinado a um destino incerto, mas certamente edificante.
“Shrinking” é mais íntima, uma série sobre emoções duras e convivência que, por acaso, é estrelada por uma lenda do cinema cuja presença na tela ainda surpreende a todos. “Já se passou um ano e continuo a pensar, que inferno, aquele é Harrison Ford”, disse Goldstein.
O personagem de Ford é um psicólogo respeitado que está com Mal de Parkinson. Foi inspirado por diversas figuras da vida real, entre as quais o avô de Lawrence, que também teve Mal de Parkinson; seu pai, que sofre de Síndrome de Lewy; e o ator Michael J. Fox, velho amigo de Lawrence desde a série “Spin City”. O personagem também se baseia no pai de Goldstein, outro sobrevivente do Mal de Parkinson.
“Brett e eu, e nossas famílias, temos isso em comum: nós enfrentamos essas situações por meio do humor”, disse Lawrence.
Goldstein é extremamente reservado sobre a sua vida pessoal, mas seu pai lhe deu permissão para discutir essa conexão –o arrazoado dele era que não tinha vergonha de sua condição e não podia escondê-la, de qualquer forma. “E também”, ele disse ao filho, “o fato de eu poder dizer às pessoas que Harrison Ford se baseia em mim é uma coisa muito cool.”
Goldstein brincou que esse presente que ele deu ao pai expandiu o território de conversação entre eles em cerca de 100%. “Futebol continua a ser o único assunto de que eu e o meu pai falamos”, ele disse. “Isso e o fato de que ele é Harrison Ford.”
O futebol, pelo menos, continua a ser o que sempre foi, para eles. “Penso que é por isso que o esporte existe”, disse Goldstein. “Como uma forma de dizer eu te amo sem dizer as palavras.”
Camuflar as emoções humanas dessa maneira se tornou o modo de ser padrão para Goldstein, quer seja usando os filmes favoritos dos seus convidados do podcast para estimulá-los a falar de seus verdadeiros medos e desejos, quer ao retratar o desconforto com relação à vulnerabilidade, na pessoa de um astro de futebol que não consegue expressar suas emoções, quer seja escrevendo piadas sobre o Mal de Parkinson para lidar com o fato doloroso de que os pais dos criadores da série são mortais.
Segel disse que Goldstein é sempre o roteirista de “Shrinking” que insiste em que, por mais cortante que seja o humor dos diálogos, os sentimentos sejam puros e verdadeiros. Isso não o surpreendeu, acrescentou o ator, já que Goldstein é fã dos Muppets.
“Parece piada”, disse Segel, que, como escritor e astro de “Os Muppets” (2011), não brinca com essas coisas. “Mas revela uma ausência de medo quanto a exprimir seriamente uma emoção.”
O que nos traz de volta ao vídeo dos marionetes de gato e às outras fascinações de Goldstein com os Muppets (“O Conto de Natal dos Muppets” talvez seja seu filme favorito de todos os tempos, ele disse, e o ator é conhecido por apresentar uma versão abreviada da história em seus números de stand-up).
Não parece existir uma chave-mestra (feita de feltro) que permita destrancar todas as idiossincrasias de Goldstein. Mas o afeto dele pelos Muppets oferece um vislumbre daquilo que o motiva como artista, criador e “workaholic”, e se relaciona menos a oportunidades, franquias ou escala do que à vulnerabilidade e ao risco de tentar atingir alguém, e à abertura necessária para aceitá-lo. Goldstein me disse numerosas vezes –a ponto de pedir desculpas por se repetir— que aquilo por que ele sempre procura é um pouco de conexão humana em um mundo que pode parecer concebido para impedi-la.
“Basta aparecer um Muppet e, pronto, estou encantando”, ele disse. “Mas isso exige de nós dois um salto de fé, do tipo, ‘estamos fazendo isso, eu estou completamente investido e vocês precisam estar completamente investidos’. E se um de nós não assume um compromisso para com aquilo, então o que temos é só uma [ele usa um palavrão] de um marionete de feltro em sua mão, e eu sou um idiota por conversar com ele e você outro idiota por segurá-lo.”
“Você entende o que quero dizer?”
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: Folha de SP