Por que ‘TÁR’ deveria ganhar o Oscar de melhor filme (mas não vai) – 10/03/2023

Existe um abismo entre “TÁR” e os outros nove indicados ao Oscar de melhor filme na cerimônia que acontece neste domingo. Claro que a qualidade de (quase) todas as produções é incontestável. A obra de Todd Field, porém, representa um cinema que Hollywood hoje hesita em fazer. Não deveria.

“TÁR” conta a história de Lydia Tár, compositora laureada em todos os aspectos de sua carreira musical, um gênio que dirige a Filarmônica de Berlim, trabalha em teatro e cinema, ao mesmo em que deixa o sucesso, a fama, o dinheiro e o poder lhe darem álibi para seus eventuais pecados. Quando estes ameaçar ruir a vida que ela construiu, Tár descobre o quão frágil é seu castelo de cartas.

Com Cate Blanchett à frente, Todd Field construiu o impensável: um filme sobre uma pessoa que muitos acreditaram ser real. Isso foi possível não apenas com o trabalho absolutamente impecável de Blanchett, em uma atuação superlativa e sem igual no ano que passou, mas também com a condução cirúrgica de seu diretor.

O brilho de “TÁR” vem de seu pulso, um filme vivo, devastadoramente alinhado com o mundo atual. Uma história sobre adultos, por adultos, para adultos.

Um sopro de otimismo

Daí vem o paradoxo. Lydia Tár é um ser humano repulsivo, o que também faz dela mais humana. Quanto mais a rejeitamos como pessoa, mais ficamos fascinados com a personagem, uma mulher complexa, de camadas raramente expostas, construída com triunfos e falhas. “TÁR” é, por fim, um filme sobre alguém de quem é fácil desgostar. É um exemplo a não ser seguido, praticamente a antítese de todo o cinema independente moderno.

Aqui vale uma pausa para analisar a concorrência. Logo depois de “TÁR”, é fácil enxergar espaço para “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” e “Os Banshees de Inisherin”. São histórias com personagens em um arco de redenção bem definido, habitando narrativas que versam, sim, sobre a condição humana. Histórias que nos fazem sair do cinema com um fiapo de esperança no ser humano.

Nos últimos anos, foram exatamente filmes assim que saíram premiados da festa da Academia. “No Ritmo do Coração”, “Nomadland”, “Green Book” e “Moonlight” trazem recortes bem definidos sobre quem aspiramos ser como pessoas. “Parasita” é um ponto fora da curva, um filme de fato histórico que costura sua crítica social ácida em uma fábula definitivamente cinematográfica. Ainda assim, consegue terminar com um sopro de otimismo.

Todd Field era ator antes de saltar em definitivo para o outro lado da câmera. Ele perseguiu tornados em “Twister” e foi o pianista que conduziu Tom Cruise para uma festa proibida em “De Olhos Bem Fechados”. Isso foi antes de ele fazer sua estreia no drama “Entre Quatro Paredes” em 2001. Depois de um hiato de cinco anos, lançou “Pecados Íntimos”. E agora, veio “TÁR”.

Seu estilo remete ao cinema que marcou o renascimento de Hollywood ao final dos anos 1960, que viu o controverso “Perdidos na Noite” laureado como melhor filme. Era uma época de anti heróis, com “Operação França”, “O Poderoso Chefão”, “Um Estranho no Ninho” e “O Franco Atirador” trazendo protagonistas incômodos, que causavam admiração e repulsa na mesma medida.

Nessa época, a indústria do cinema percebeu que a arte não evoluía sem correr riscos. Apostar no inusitado estimulou a plateia a voltar às salas escuras para ser surpreendida. O cinema era, sim, uma celebração do espetáculo. Mas também era incômodo, era inquisidor, era criativamente revigorante e encantava os sentidos na mesma medida que estimulava as sinapses. Era tanto “Taxi Driver” quanto “Star Wars“.

Cinema sem concessões

O cinema precisa retomar o foco em contar histórias, especialmente aquelas que nos cutucam e nos provocam. No mundo moderno, também se deve atentar em promover a diversidade e a representatividade. O cinema, como a sociedade, deve ser colorido, multifacetado e voltar suas lentes para todas os espectros da condição humana. Mas isso deve ser sempre consequência da história a ser contada, e não a própria história.

“TÁR” é uma retomada desse tipo de cinema, ao mesmo tempo incômodo e fascinante, sem concessões, sem atalhos, sem celebração. Contradições escancaradas com som e luz. Poucos filmes lançados nos últimos anos foram brilhantes assim ao expôr nossa fragilidade como indivíduos e como sociedade. “Holy Spider” traz esse mesmo DNA. “Birdman”, “A Pior Pessoa do Mundo” e, principalmente, “Trama Fantasma”, ecoam o mesmo sentimento.

Celebração das diferenças

Não é, contudo, a temperatura do Oscar 2023. Faz todo o sentido um filme como “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” despontar como o favorito para a festa que acontece no próximo domingo. Ele traz uma história original erguida em torno da expressão da vez – o “multiverso” -, conduzida por um elenco em sua melhor forma e assinada por um estúdio independente, o A24, que tem oferecido uma safra impecável.

Acima de tudo, talvez seja a vitória que o cinema precise neste momento em que os Estados Unidos ameaçam se fechar mais uma vez no obscurantismo e na ignorância. A arte tem, afinal, o poder de contra atacar as trevas com uma celebração das diferenças. “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” combate o ódio com uma doce cavalar de boa vontade e positivismo. É o filme certo na hora certa.

Mas não é, nem de longe, “TÁR”.



Fonte: UOL Cinema

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