Jeremy W. Peters
Nicole Sperling
The New York Times
As histórias abaixo não se baseiam em acontecimentos reais. Na realidade, foram completamente inventadas —mesmo que o objetivo fosse parecer real.
Não, a equipe da rainha Elizabeth 2ª nunca teve de esconder uma cópia do jornal The Sunday Times devido a uma manchete de primeira página devastadora, mas inexistente: “Rainha deveria abdicar em favor do príncipe de Gales, metade do público britânico concorda”.
Não, Jerry West, antigo treinador principal do Los Angeles Lakers, nunca teve acessos de raiva violentos a ponto de quebrar um taco de golfe contra seu joelho, nem atirou seu troféu de MVP [melhor jogador do ano] por uma janela de seu escritório.
E não, os dois policiais que perderam involuntariamente uma oportunidade de prender Jeffrey Dahmer antes que o assassino serial pudesse voltar a matar não receberam um título de policiais do ano conferido pela polícia de Milwaukee.
Mas os milhões de pessoas que assistiram a três dos mais populares dramas históricos do ano passado —“The Crown” e “Dahmer: Um Canibal Americano”, da Netflix, e “Lakers: Hora de Vencer”, da HBO– tiveram de descobrir sozinhos como separar fato e ficção.
E essas séries nada têm de incomum no florescente gênero do entretenimento baseado em histórias reais.
O número de séries e filmes que retratam acontecimentos reais vem crescendo nos últimos anos —dramatizações sobre pessoas e acontecimentos conhecidos jamais tinham sido tão populares e prevalecentes– e isso também resultou no crescimento das liberdades que os roteiristas tomam com relação aos fatos.
Em muitos casos, não se trata de simples floreios para efeito dramático, mas de completas invenções. Algumas das pessoas que dizem ter sido reduzidas a caricaturas grosseiras nas telas abriram processos por difamação. E séries como “The Crown” se viram forçadas a acrescentar, tardiamente, avisos legais que isentam seus produtores de responsabilidade e informam que aquilo que as pessoas estão assistindo é na verdade uma versão dramatizada de acontecimentos reais.
Às vezes, os avisos legais bastam para proteger um estúdio contra responsabilidade judicial, especialmente se forem exibidos de forma proeminente nos letreiros de abertura e oferecerem detalhes quanto ao que é ficção, indo além de uma declaração genérica do tipo “história baseada em acontecimentos reais”. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos [que garante a liberdade de expressão] oferece ampla proteção para obras artísticas como produções cinematográficas e televisivas que retratam pessoas sob seus nomes reais.
Mas, se alguém for capaz de argumentar convincentemente que foi prejudicado por aquilo que os roteiristas inventaram, isso basta para justificar um processo forte por difamação, disse Jean-Paul Jassy, advogado que trabalha em casos de mídia e relativos à Primeira Emenda em Los Angeles. “Um aviso legal não é uma cura universal”, ele disse.
“E é quanto a isso que as coisas se complicam mais nos ‘docudramas’ [programas que combinam dramatização e material documental]”, acrescentou Jassy. “Um tribunal poderia afirmar que compreende que há elementos ficcionais na série. Mas o nome de uma pessoa real foi usado, e algo falso foi apresentado como fato e prejudicou a reputação dessa pessoa.”
Processos judiciais desse tipo costumam terminar com mais fracassos do que sucessos porque é provável que muito poucos fãs desses programas acreditem estar vendo a história como ela transcorreu de forma literal. Hollywood, é claro, sempre intensifica o drama ao contar —e vender— histórias verdadeiras.
Mas quando programas como “The Crown” se tornam tão populares porque —pelo menos até certo ponto— os espectadores acreditam que estão aprendendo alguma coisa sobre os acontecimentos, as liberdades tomadas pelos escritores vão além da licença dramática, dizem pessoas interessadas em esclarecer os fatos.
Hugo Vickers, um jornalista britânico que verifica a veracidade dos episódios de “The Crown” para o The Sunday Times e é autor de diversos livros sobre a monarquia, classificou alguns dos acontecimentos mostrados nas cinco temporadas da série como “uma completa perversão da história”. “Eles fazem isso o tempo todo”, disse Vickers. “E nem ligam.”
A Netflix acrescentou uma notificação legal depois de receber críticas de pessoas bem posicionadas sobre as imprecisões em “The Crown”, por exemplo da famosa atriz britânica Judi Dench e do antigo primeiro-ministro John Major, no caso do segundo sobre uma cena que retrata uma conversa imaginária entre Major e o príncipe Charles sobre a possível abdicação da rainha. Mas o aviso legal, que informa que a série é “inspirada por acontecimentos reais”, não aparece no programa em si, mas sim em seu material de imprensa e no trailer que foi veiculado no YouTube.
Um aviso legal também aparece na série da HBO sobre o Lakers e afirma que, em parte, “esta série é uma dramatização de certos fatos e eventos”. Mas West, o antigo treinador, e alguns de seus jogadores consideram que a notificação é totalmente insuficiente. Através do seu advogado, West exigiu um pedido de desculpas da HBO, dizendo que a série o difamou “falsa e cruelmente” como “um sujeito raivoso, descontrolado e embriagado”.
Kareem Abdul-Jabbar, antigo pivô do Lakers e personagem central de “Lakers: Hora de Vencer”, acusou a HBO de “sinalizar virtudes de maneira pesada demais” ao inventar cenas destinadas a destacar o tratamento sexista que muitas mulheres sofriam no local de trabalho na década de 1970.
Em seu boletim no Substrack, Abdul-Jabbar escreveu que a tentativa da série de chamar a atenção para o assunto era ofensiva porque retratava uma executiva da equipe desabotoando a blusa e arranjando o cabelo antes de se encontrar com o seu futuro chefe —algo que a executiva disse nunca ter acontecido. A cena, disse Abdul-Jabbar, “reduz a inteligência e competência dela a uma piada barata”.
A HBO afirmou em uma declaração que “tem um longo histórico de produzir conteúdo convincente com base em fatos e acontecimentos reais, que recebem toques de ficção para fins dramáticos”. A rede acrescentou que “‘Lakers: Hora de Vencer’ e os retratos que a série pinta, como acontece com outros programas semelhantes, se baseiam em extensa pesquisa factual e em fontes confiáveis”.
A HBO não é o único estúdio que inventou tramas em seus enredos para que ressoem social e culturalmente no clima atual.
Especialistas em difamação e estúdios de Hollywood estão acompanhando de perto a evolução de um processo judicial movido contra a Netflix por Linda Fairstein, uma antiga procuradora pública que se opôs à maneira pela qual foi retratada em “Olhos que Condenam”, uma série de 2019 sobre o caso Central Park Five. O programa dramatiza a maneira pela qual a Justiça e a polícia de Nova York se apressaram a condenar cinco adolescentes negros e latinos —todos os quais terminaram inocentados posteriormente— pelo estupro de uma mulher branca que estava correndo no Central Park em 1989.
Na série, Fairstein é mostrada ocultando provas, encorajando a polícia a interrogar brutalmente os suspeitos e expressando completo desrespeito pela verdade quanto a eles serem ou não culpados. Após a série ter sido lançada, causando forte reação contra Fairstein nas redes sociais, ela teve seu contrato cancelado por sua editora e foi forçada a se desligar dos postos que ocupava em diversos conselhos.
Fairstein disse que a maneira pela qual foi retratada é “imensa e maliciosamente imprecisa” e abriu um processo contra a Netflix em março de 2020. Um juiz federal decidiu que suas queixas de que foi difamada em cinco cenas diferentes da série eram plausíveis, e o caso está sendo julgado pela primeira instância da justiça federal americana. Ava DuVernay, a criadora da série, entrevistou os homens acusados injustamente, mas não contatou Fairstein.
Em documentos referentes ao processo, os advogados da Netflix argumentam que o roteiro conta claramente com a proteção da Primeira Emenda, por ser “uma dramatização artística de acontecimentos históricos controversos e contestados”.
Diante de um clima de maior sensibilidade quanto a questões de desigualdade racial e de gênero, muitos roteiristas de Hollywood estão transformando essas questões em pontos importantes de seus enredos, mesmo que isso signifique por vezes exagerar os detalhes. Foi esse o caso em “Dahmer: Um Canibal Americano”, um dos maiores sucessos da Netflix no ano passado.
Embora a série utilize registros históricos, incluindo transcrições oficiais de seu julgamento de 1992, para retratar com precisão alguns aspectos da maneira pela qual Dahmer, um assassino em série canibal, transformava homens jovens em vítimas, e como ele escapou da Justiça durante muito tempo, o roteiro inventa momentos para ilustrar de que maneira as falhas sistêmicas da justiça criminal permitiram que ele permanecesse em liberdade.
A cena de abertura da série, por exemplo, mostra uma das personagens, uma mulher negra, assistindo a uma reportagem que a incomoda, no telejornal noturno: cinco policiais brancos de Milwaukee tinham espancado um agente negro infiltrado, supondo que ele fosse um criminoso.
Mas quando o jornal The Milwaukee Journal Sentinel decidiu conferir a veracidade da série —e revelou mais do que algumas poucas imprecisões—, não encontrou relatos de qualquer incidente semelhante em Milwaukee. A única reportagem que parecia se enquadrar, segundo o jornal, se referia a um caso no Tennessee um ano depois de Dahmer ser preso.
Anne Schwartz, ex-repórter policial que estava presente no local na noite em que Dahmer foi capturado e mais tarde escreveu um livro sobre o caso, culpou os roteiristas por tentarem projetar temas que se tornaram mais salientes hoje sobre acontecimentos transcorridos mais de 30 anos atrás. “A ideia é recuar e olhar para o caso com as lentes de 2022, e não com as de 1990”, ela disse.
Quando a HBO lançou um drama biográfico sobre Julia Child, a célebre chefe de cozinha televisiva, no ano passado, algumas pessoas que a conheciam disseram que a série retratou incorretamente o marido de Child, Paul, como um homem que se sentia ameaçado pelo seu sucesso. E um executivo que trabalhou por muitos anos como produtor de Child se queixou de ter sido retratado, indevidamente, como cético com relação ao primeiro programa de culinária que ela estrelou —um sucesso que derrubou barreiras para uma mulher na televisão da década de 1960.
Advogados que representam estúdios dizem que muitas vezes não é viável —ou legalmente necessário— verificar os roteiros em termos de exatidão histórica. E não é comum que produtores contatem as pessoas cujas vidas eles estão transformando em ficção. Não há qualquer obrigação legal de que o façam.
“No setor, as pessoas reais que inspiram personagens raramente são consultadas, porque isso é um problema para os cineastas”, disse Zelda Perkins, antiga assistente do produtor de cinema Harvey Weinstein. Perkins trabalhou com os produtores em “She Said”, nova série dramática que acompanha a história das repórteres do New York Times que expuseram décadas de abuso sexual de Weinstein contra mulheres.
“Acredito que a indústria cinematográfica tenha um enorme caminho a percorrer se quiser continuar a fazer histórias sobre pessoas da vida real na velocidade com que vem fazendo”, ela acrescentou. “Porque, na verdade, tendo passado por isso e recebido um tratamento bastante respeitoso, não consigo nem imaginar os danos que o processo deve causar às pessoas com quem não haja colaboração.”
Os realizadores muitas vezes tentam ser tão sensíveis quanto podem com relação às pessoas cujas histórias estão contando, disse Brad Simpson, produtor da antologia “American Crime Story”, que cobriu três momentos dramáticos da história recente —o julgamento de O.J. Simpson por assassinato, o assassinato de Gianni Versace e o impeachment do presidente Bill Clinton. É por isso, disse Brad Simpson, que ele e seus colegas envolveram Monica Lewinsky em sua série “American Crime Story: Impeachment”, para ajudá-la a retomar o controle de sua versão sobre o acontecido.
“Acho que quando você faz televisão baseada em pessoas reais, é preciso estar sempre incrivelmente consciente de que há vítimas reais no centro de todas estas histórias”, ele disse.
Mas Simpson, que comparou o atual fascínio popular por crime verdadeiro àquilo que os Estados Unidos experimentaram nos anos 60 e 70 com “A Sangue Frio” e “Helter Skelter”, reconheceu que, por fim, o que ele e outros produtores fazem é criar entretenimento.
“É uma situação realmente difícil para as pessoas, quando elas fizeram parte de uma história verdadeira e depois veem a experiência na tela. O instinto natural é que se sintam violadas, é que sintam que ninguém conversou com elas ou que deveriam ter sido pagas por sua história”, disse Simpson.
“Não é assim que a lei funciona”, ele acrescentou. “Não é assim que essas séries são feitas ou escritas.”
E a fria realidade, ele disse, é que “a história de alguém pode ser usada para vender assinaturas de streaming”.
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: Folha de SP
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