The New York Times
Jill Badlotto estava na casa dos 20 anos quando desenvolveu uma relação de “amor e ódio” com as meninas de “Girls”, série de comedia dramática da HBO. Badlotto acompanhou a série enquanto as personagens principais —Hannah, Marnie, Jessa e Shoshanna– saltavam de empregos não pagos a raves no Brooklyn, sempre se criticando mutuamente pelo narcisismo que não eram capazes de reconhecer em si mesmas.
Quando Badlotto, 35, hoje organizadora de casamentos no sul da Flórida, reviu a série este ano, as personagens ainda a irritavam. Mas desta vez sua rejeição não foi tão forte. “Vejo muito mais de mim nelas”, disse Badlotto, fazendo uma pausa. “Talvez tenha sido por isso que as odiei tanto, na época.”
Pouco mais de uma década após sua estreia, muita gente decidiu assistir de novo —e em alguns casos reconsiderar— “Girls”, a série de Lena Dunham sobre quatro mulheres brancas que vivem precariamente os seus 20 anos na cidade de Nova York. O público da série dobrou entre novembro e janeiro, com relação aos três meses anteriores, de acordo com um porta-voz da HBO.
Os espectadores que estão regressando, e aqueles que estão assistindo à série pela primeira vez dissecam o programa em bares e em chats em grupo, sobem cenas editadas para o TikTok e usam “Girls” para refletir sobre o passado muito recente (na temporada um, Marnie usa um Blackberry e Jessa tem um celular de “flip”).
“Gosto de definir a série como um trabalho de época”, disse Julia Gray, 27, jornalista em Brooklyn e apresentadora de “Girls Room”, um podcast que fala sobre voltar a assistir à série que ela criou no ano passado.
“Girls” foi lançada em 2012, em meio a uma onda de opiniões apressadas que definiam a geração milênio como a mais resmungona e preguiçosa de todos os tempos. A série deliberadamente brincava com esses clichês e os satirizava, começando por seu primeiro episódio, no qual a personagem de Dunham, Hannah, tem seu dinheiro cortado pelos pais e logo se queixa de que ela talvez seja a voz —”ou pelo menos uma voz”– de sua geração.
Talvez involuntariamente, “Girls” também serve como uma cápsula do tempo sobre a vida de uma subcategoria privilegiada de moradores da cidade de Nova York na metade da década de 2010. As protagonistas da série tinham acabado de se formar, em meio a uma recessão, e lutavam para se acomodar à ascensão de apps como o Instagram e o Tinder, tudo isto enquanto passavam pela agitação típica dos jovens de 20 e poucos anos.
Era uma representação verdadeira demais, para alguns espectadores. Mas agora, aos 30 e poucos anos, algumas das pessoas da geração milênio que estão revendo “Girls” conseguem acompanhar com maior clareza os primeiros anos de suas vidas como adultos.
“Agora a série ressoa muito mais”, disse Alix Seracki, 30, fotógrafa em Manhattan, que está revendo a série com quatro amigos. Eles estão acompanhando tramas como o relacionamento intermitente entre Hannah e Adam (Adam Driver), e o elenco sempre mutável de colegas com quem ela divide seu apartamento. A expressão “muito real” surge frequentemente em suas mensagens de texto.
“Essa ideia de ‘assistir de novo’ é um rótulo incorreto, porque na realidade as pessoas estão fazendo uma nova introspecção por meio da série”, disse Cristel Antonia Russell, professora de marketing na Graziadio Business School, Universidade Pepperdine, que pesquisa sobre hábitos de consumo televisivo.
Russell disse que uma das principais razões para voltar a assistir programas de TV —uma prática que ela acredita ter se tornado mais popular nos 10 últimos anos devido ao streaming e às suas opções quase ilimitadas— é apreciar a maneira pela qual todos mudamos, entre nossos momentos de contato com uma série que permanece a mesma. Um programa como “Girls”, que fala sobre jovens desorientados de 20 e poucos anos, pode ser reconfortante para pessoas agora cerca de 10 anos mais velhas que tenham sobrevivido ao caos daquela época, ela disse.
Quando Badlotto viu o programa pela primeira vez, ela disse, ficou frustrada quando Hannah se inscreveu e imediatamente abandonou um programa de mestrado na Iowa Writers’ Workshop.
Neste ano, Badlotto voltou a assistir à série e viu exatamente o mesmo enredo como uma demonstração realista de tentativa e erro –o que representa uma parte essencial do crescimento. “Isso é o que há de mais bonito em estar na casa dos 20 anos: é realmente o único período em sua vida em que é possível fazer coisas como essa”, ela disse.
Quando a série foi transmitida originalmente, parecia despertar sentimentos muito mais fortes. “Girls” se alternava entre provocar fortes sentimentos negativos, e uma forte reação a esses sentimentos, por suas cenas de nudez e de sexo, pela brancura de seu elenco (e a defesa de sua equipe de criadores contra as acusações referentes a isso), o narcisismo de seus personagens, e as declarações (e muitas vezes o corpo) da sua criadora, Dunham. Em 2017, o site Vulture publicou uma lista com 1,5 mil itens sobre todas as controvérsias causadas pela série.
Que “Girls” tenha atraído tantas críticas, em sua época, a torna um tema de discussão especialmente rico uma década mais tarde, disse Gray, especialmente agora que novas séries, como “Insecure” e “Fleabag”, surgiram para mostrar outras mulheres que não têm suas vidas completamente resolvidas.
Em seu podcast, ela revisitou uma cena da segunda temporada na qual Hannah joga pingue-pongue, nua, com um paquera interpretado por Patrick Wilson. A nudez de Dunham costumava frequentemente ser recebida com indignação ou elogios, mas uma década mais tarde Gray disse que a via como radicalmente neutra. Dunham “não fazia aquilo como uma afirmação de que corpos menos que perfeitos merecem ser mostrados, mas sim como uma declaração de que ‘esse é meu corpo, esse é o corpo de uma pessoa normal’”, ela disse. “Ela estava realmente à frente do seu tempo quanto a isso.”
Mas há outros aspectos da série que Gray acredita que ainda mereçam ser discutidos. “Por exemplo, o personagem negro simbólico é republicano”, ela disse, se referindo a um parceiro amoroso de Hannah interpretado por Donald Glover na segunda temporada. “O que ela estava tentando dizer com aquilo? Não funciona.”
Tameka Amado, 30, consultora em Boston, não via a série com simpatia quando esta foi ao ar pela primeira vez, por conta de algumas dessas críticas. Ela disse que preferiu não assistir ao programa porque achava que não teria coisa alguma a dizer a ela, uma mulher negra em idade universitária. “Sempre ouvi que, tipo, Lena Dunham era a queridinha da mídia, toda problemática”, ela disse.
Mas quando viu no TikTok um vídeo da série em que Shoshanna, interpretada por Zosia Mamet, detona os egos das amigas em uma casa de praia, ela decidiu assistir pela primeira vez. Ficou frustrada com a escassez de personagens negras na série, mas achou que o programa capturava muito bem as mulheres brancas privilegiadas. “Embora eu tenha terminado odiando todo mundo, eu as odiava porque a escrita é muito boa”, ela disse.
Dunham está ciente do renascimento de “Girls”. Falando por telefone de Berlim, ela disse que se sentia lisonjeada e um pouco perplexa com o interesse renovado dos telespectadores, que ela descobriu por meio de mensagens de texto de amigos. Dunham disse que esperava que os novos espectadores apreciassem a série, ainda que algumas das piadas talvez não funcionem em 2023.
“O meu desejo é que eles talvez possam vê-la com alguma distância de pelo menos parte da bagagem que a acompanhava naquele momento”, ela disse.
Dunham mesma sente uma nova distância entre sua pessoa e aquele material. Ela assistiu recentemente a um vídeo editado para o TikTok, enviada por uma amiga, que mostrava um momento amoroso entre Marnie (Allison Williams) e o parceiro Charlie (Christopher Abbott), ao som de uma canção de Phoebe Bridgers.
“Fiquei bem comovida, na verdade”, disse Dunham. “Quase me esqueci que tinha alguma coisa a ver com aquilo.”
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: Folha de SP
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