Como Casas dos Sonhos da Barbie ganharam vida em filme: ‘Tínhamos que acreditar que era real’


The New York Times

Quando trabalharam em filmes como “Desejo e Reparação”, “Anna Karenina” e “O Destino de Uma Nação”, a designer de produção Sarah Greenwood e a decoradora de cenários Katie Spencer, ambas várias vezes indicadas ao Oscar, tiveram que criar cenários com todos os detalhes precisos relativos à época das histórias, usando sua atenção extraordinária aos detalhes para conferir textura e alma a esses espaços.

Esses trabalhos lhes exigiram muito, pois bastaria uma coisa parecer deslocada para fazer desaparecer a ilusão de época do filme. Mas não se compararam em dificuldade com a comédia cor-de-rosa de estúdio que é “Barbie”, de Greta Gerwig.

Em uma videochamada dividida com Spencer na semana passada, Greenwood me disse: “Foi um dos trabalhos mais difíceis, filosóficos, intelectuais e cerebrais que já encaramos. Como é possível? É ‘Barbie’! Mas realmente foi”.

Mas como o filme funciona em vários níveis, a verdade é que há muitos aspectos de “Barbie” que são mais complexos do que se poderia imaginar. Apesar de ser um filme de grande orçamento baseado numa boneca da Mattel, Gerwig e o corroteirista Noah Baumbach colocam muitas questões importantes sobre a vida e a condição feminina ao longo do filme. E nas visualmente deslumbrantes Casas dos Sonhos da Barbie que Greenwood e Spencer criaram –em que Margot Robbie e Ryan Gosling atuavam como Barbie e Ken—, mesmo os menores detalhes do pano de fundo exigiram muitos meses de reflexão existencial.

“Tudo foi pensado e analisado, absolutamente tudo”, disse Spencer.

Greta Gerwig chegou ao projeto como aficionada genuína de Barbie, mas Greenwood e Spencer não tinham nenhuma relação pessoal passada com a boneca. “Nenhuma de nós duas teve uma Barbie na infância”, disse Spencer. “Acho que éramos como boa parte da população –bem críticas em relação a ela.”

Mesmo assim, cativadas pelo entusiasmo de Gerwig, as duas mergulharam em um trabalho intenso de pesquisa. A orientação principal que receberam foi preservar o clima de brincadeira. É a razão por que a casa da Barbie não tem escadas: por que uma boneca se sujeitaria a descer uma escada quando pode descer por um escorregador circular cor-de-rosa ou, melhor ainda, descer do telhado flutuando graciosamente, como se estivesse sendo carregada pela mão invisível de uma criança?

“Tínhamos que acreditar tanto na ideia quanto se fosse um filme espacial ou de época”, disse Spencer.

Primeiro as designers estudaram uma Casa dos Sonhos da Barbie vintage e descobriram que era muito menor do que haviam imaginado: uma Barbie de proporções típicas só precisava levantar a mão para encostar no teto de cada um dos cômodos.

Para simular essa sensação, “as Casas dos Sonhos do filme são 23% menores do que seriam, assim como os carros e as estradas”, disse Greenwood. “Quando você encolhe a casa, faz os atores, como Margot e Ryan, parecer menores, e assim tudo fica com ar de brinquedo.”

Em vez de adaptar as Casas dos Sonhos para que parecessem mais reais, Greenwood e Spencer reforçaram seu aspecto surreal. Quando Barbie abre sua geladeira, a maioria dos alimentos não passam de adesivos chatos. Sua xícara, grande demais, não contém líquido –afinal, por que deveria, já que a Barbie não bebe?—, e o tamanho de sua escova de dentes é ainda mais exagerado, pelo fato de ser o tipo de acessório que uma criança poderia encontrar incluído na casa da boneca.

“Depois que você criou esses ‘momentos boneca’ algumas vezes, a coisa toda ganha credibilidade”, disse Spencer.

Com poucas paredes internas, as Casas dos Sonhos são um exemplo perfeito de “plano aberto”, fato que criou seus próprios problemas logísticos. “Na prática, você está desenhando algo que não está ali”, disse Greenwood. Ela se inspirou em dioramas de museu para sugerir camadas de segundos planos que poderiam ajudar a preencher cada tomada. Como nossas Barbies principais vivem em um beco sem saída –na verdade, é o pontinho do “i” das estradas em letra cursiva que formam as palavras “Barbie land”—, cada Casa dos Sonhos dá para várias outras Casas dos Sonhos. O céu azul e as montanhas roxas que as cercam foram pintadas à mão sobre um pano de fundo de 240 metros de comprimento, criado com a intenção de lembrar os cenários dos musicais antigos.

Se o efeito é artificial, é justamente essa a intenção: por que preservar a quarta parede de casas que praticamente não têm paredes, para começar? “É falsificar o falso, e isso é perfeito”, disse Greenwood. “O modo como Greta abordou a coisa é quase brechtiano.”

Não há fogo real na lareira de Barbie, nem água em sua piscina, já que Barbieland é fechada hermeticamente, como uma caixa de brinquedo. Nem sequer há tons de branco, preto ou marrom: qualquer coisa em uma Casa do Sonho que normalmente teria uma dessas cores é simplesmente de um tom diferente de rosa. O tom fúcsia principal é tão forte que a produção esgotou todo o estoque de tintas dessa cor de seu fornecedor de tintas.

“Todas as outras cores, como os azuis, tiveram que ser intensificadas”, disse Greenwood.

As Casas dos Sonhos do beco sem saída foram projetadas em estilo moderno de meados do século 20, evocando o período em que Barbie foi inventada. “Ficávamos sempre voltando à estética de Palm Springs”, disse Spencer. Formando um contraste com essas casas, caracterizadas por linhas simples e limpas, havia a casa pós-moderna no alto de um morro pertencente à Barbie Estranha (Kate McKinnon) –um festival de ângulos estranhos e cores que não combinam.

“Havia sido uma Casa dos Sonhos no passado e então ficara um pouco estranha, como ela”, disse Greenwood.

Como sua dona, cujo rosto é coberto de rabiscos, as paredes das casas da Barbie Estranha são enfeitadas com desenhos e rabiscos aleatórios, e há muitas outras cores visíveis além do rosa (a cor principal de uma parede chega a ser… que estranho… verde!). As outras Barbies tratam a casa dela como se fosse uma casa da bruxa, mas não se pode negar que a Barbie Estranha tem gosto interessante. Greenwood e Spencer apontaram seu tapete de arco-íris irregular como um objeto favorito que todo o mundo tinha a esperança de poder levar para casa.

“Todos nós queríamos o tapete dela, mas foi parar no depósito protegido da Warner Bros.”, disse Spencer. “Mas acho o máximo que nesse depósito, onde é preciso passar por tanta segurança para entrar, você encontra o Batmóvel e o carro da Barbie.”

A casa da Barbie estranha não é o único desvio do filme: mais para a frente na história, depois que uma viagem ao mundo real leva Ken a tomar consciência do poder do patriarcado, ele volta para casa e incentiva os outros Kens a converterem a Barbie Land, cor-de-rosa e tão feminina, em seu próprio “Ken-dom”, ou mundo do Ken. E não demora nada para eles arquitetarem uma tomada hostil das Casas dos Sonhos –que eles rebatizam de “Mojo Dojo Casa Houses”—e as encherem de coisas masculinas, como poltronas reclináveis, minigeladeiras de bebidas e abajures horríveis com tema equestre.

“Tínhamos que voltar para Greta toda hora para confirmar: é para ser assim mesmo? Realmente feio?”, contou Greenwood. “Mas há uma pureza também nessa feiura, porque a paleta de cores é limitada.”

Isso é porque esses bonitinhos não sabem ao certo onde todos aqueles objetos roubados devem ser colocados. Nem sequer sabem para que serve a maioria das coisas. Churrasqueiras foram colocadas aleatoriamente em cima de fogões, os liquidificadores estão cheios de Doritos, e os televisores de tela plana em cada uma das Mojo Dojo Casa Houses estão ligados no mesmo clipe hipnoticamente banal de um cavalo eternamente galopando.

“Ken não é decorador de interiores, isso é uma certeza”, falou Spencer, sorrindo. “Mas vou contar um segredo: muita gente da equipe queria comprar coisas da Ken-dom. Não vou dizer quem, mas muitos deles.”

O filme foi rodado no ano passado no estúdio Leavesden da Warner Bros., cerca de 40 km a noroeste de Londres. Quando a notícia dos cenários coloridos se espalhou, a produção começou a atrair grande número de visitantes. “Estávamos filmando no inverno inglês. Tudo era cinza ou branco, com a neve”, disse Greenwood. “Então as pessoas iam lá para receber uma injeção de luz e de verão.”

Segundo Spencer, os cenários “deixavam as pessoas felizes, era impossível não sorrir”.

E suas criadoras? O tempo todo que passaram nesses cenários de “Barbie” afetaram sua paleta pessoal de cores? Greenwood admitiu que sim. “Pintei meu quarto de rosa, literalmente”, ela disse. “Eu nunca antes havia pintado nada de rosa. Agora eu adoro o rosa!”

Tradução de Clara Allain

Fonte: Folha de SP

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