São Paulo
“Eu acordo e não me lembro…”. Vera Holtz, logo nos primeiros segundos de “As Quatro Irmãs”, revela que a passagem do tempo pode ser perigosa: ela não se recorda de detalhes específicos de sua convivência familiar. Papéis, personagens, grandes atuações… tudo o que diz respeito à carreir segue em perfeito estado na cabeça da atriz. Mas e o que acontecia depois dos bailes de carnaval, ainda na juventude acompanhados de suas três irmãs Teresa, Regina e Rosa no interior de São Paulo?
Essa é uma das perguntas respondidas em documentário, que ganhou sessão especial nesta terça-feira (8), na capital. Após lançamento na última segunda-feira (7) em plataformas de streaming (disponível em Vivo, Google Play, Claro TV e Apple TV), mesma data em que Vera completou 71 anos, “As Quatro Irmãs” ganhou uma salva de palmas calorosa no CineSesc e foi capaz de emocionar, mais uma vez, a própria atriz de grandes sucessos da dramaturgia como “Avenida Brasil” e “A Próxima Vítima”.
Em sessão lotada, Vera (trajando seu tradicional vestido preto até os calcanhares) chegou cedo, cumprimentou amigos e parecia se divertir com todos ali. Depois da sessão, tirou fotos com todos que a abordaram. Vera aparentava estar feliz, mesmo que o filme exponha uma questão mais delicada de sua intimidade. A atriz e o pai, José Carlos, não tinham uma relação das mais tranquilas. Embates eram frequentes e, ao se ver “totalmente distante” da rigidez com que foi criada, decidiu sair de casa, aos 23.
Vera conta que fez tudo o que sempre quis e peitou o pai até mesmo ao organizar um baile hippie, na pequena Tatuí, onde morava, quando tinha 18 anos, em um clube da cidade. O pai tentou proibir, mas ela era “imparável”: Fugiu pela janela e foi se divertir no ambiente ripongo que havia criado para curtir com os amigos. A relação com José Carlos era difícil, ela se sentiu rejeitada, mas garante: não há traumas.
“Acho que esse filme era uma catarse, uma necessidade realmente de vir à tona para transbordar e equalizar [a opinião sobre ele] com as minhas irmãs”, diz, em entrevista ao F5, logo após a exibição. Em depoimento recente ao programa de Marcelo Tas, Vera lembra que até chegou a defender a figura do pai. Isso tudo porque, antes de ele morrer, se ainda havia alguma mágoa, ela ficou para trás após um afetuoso depoimento dele na TV.
A artista recorda que, em uma edição do “Arquivo Confidencial”, de Faustão, o apresentador pergunta se Vera foi uma jovem que “deu trabalho”. Pronta para a resposta afirmativa, ela e Zé Carlos se entreolharam. “Ele parou, pensou bem, e falou: ‘Nunca me deu trabalho, só me deu saudades’ (risos). Depois disso, perdoei meu pai para todas as próximas reencarnações dele”, diz.
SUPERAÇÃO
“As Quatro Irmãs” usa e abusa de repetições. Afinal, para se lembrar do passado, nada melhor do que repetir andanças, gestos e gritos que eclodiam pela casa da família. Diversas vezes, é possível ver Vera encostada na parede chamando o pai e a mãe, aos sussurros. No fim, esses excessos ajudam o espectador a entrar mais a fundo nas lembranças da própria atriz.
O cenário também ajuda: o documentário de quase uma hora e meia é todo filmado em um velho casarão da família, em Tatuí, já centenário. Rosa, Teresa, Regina e Vera andam, fazem jantares, bebem vinho e cantam ao redor da mesa de jantar.
Entre os depoimentos, Vera revisita bailes em que varou a madrugada, emendando com idas à igreja. “Eu fiz isso?”, questiona ela. “É claro, Vera, a gente era obrigada”, respondem as irmãs, entre risadas. Vera também recorda detalhes mais prosaicos de seu dia a dia na juventude. Lembra, por exemplo, o quanto era chato varrer a calçada em frente à casa após um dia de chuva. “A rotina era cansativa”, sentencia ela.
Entre desabafos sobre o sistema rígido do pai e a organização extrema da mãe, Vera também fala de momentos curiosos, como o seu primeiro porre, aos 14 anos. Descendente de italianos, a primeira bebedeira veio aos pouquinhos, em casa mesmo. E foi à base de sangria, bebida que mistura vinho com pedaços de frutas.
“De restinho em restinho nos copos dos adultos, puf, bebi, e caí. É uma viagem, né, a primeira vez que você bebe… É uma viagem. Flutuando, de repente, não tem fronteira a vida… lembro disso, lembro que tudo se abriu (risos)”.
Mais do que lembranças, “As Quatro Irmãs” também serviu para ajudar a atriz a cravar algumas certezas de vida. Dedicada ao teatro e sem atuar em novelas desde “Amor de Mãe“, quando fez uma participação como a sequestradora Kátia, em 2019, Vera peitou as pressões sociais que existem desde que o mundo é mundo e nunca quis ser mãe —e está felicíssima assim.
“Nada, nunca tive isso de ser mãe, nada, cada um organiza o desejo como quer”, pontua ela. “Eu vivo muito na criação, então na minha família tem bastante gente para fazer isso melhor do que eu.”
A atriz conta que, mais do que tudo, quer guardar com carinho as recordações puxadas dos escaninhos de sua memória no delicado longa dirigido por Evaldo Mocarzel. Se há algo que ela não quer se lembrar é que, agora, sente é que “tem mais passado do que futuro”. “Como vou resolver essa equação do timming de vida… do que ainda tem pela frente, com todo esse passado, esse presente, como vai ser? Como vou interagir com esse tempo? É um mantra. Todo dia. Mas a gente segue.”
Fonte: Folha de SP