The New York Times
Quase toda sexta-feira, o Victoria & Albert Museum, em Londres, fecha às 22h em ponto. Mas em uma noite de verão no ano passado, depois que todos os turistas haviam deixado o edifício e tomado as ruas de South Kensington, dois homens passaram a noite dançando abraçados entre os Berninis e Rodins, até o nascer do sol na manhã seguinte. Uma cover de “Can’t Help Falling in Love”, da cantora de indie-pop Perfume Genius, ecoava pelo salão de esculturas, acompanhando o momento de ternura do casal.
A cena noturna veio de um roteiro para “Vermelho, Branco e Sangue Azul”, adaptação cinematográfica do romance homônimo lançado em 2019 por Casey McQuiston. Os dois homens sob as luzes intimistas eram os atores Taylor Zakhar Perez e Nicholas Galitzine, e os dois dançaram até que o diretor, Matthew López, dissesse “corta!”, por volta das 2h, interrompendo as filmagens para o almoço.
“Éramos apenas nós três e a equipe”, disse López, também um dos roteiristas do filme. “Foi uma noite incrivelmente íntima e muito especial.”
A comédia romântica acompanha Alex Claremont-Diaz, o filho bissexual da primeira mulher presidente dos EUA (interpretada por Uma Thurman, com sotaque sulista), e o príncipe Henry, o irmão mais novo do herdeiro do trono britânico, que sabe desde o nascimento que é “completamente gay”. O que começa como uma rivalidade acirrada entre o impulsivo americano (Zakhar Perez) e o britânico (Galitzine) logo se transforma em um relacionamento clandestino. Nenhum dos dois assumiu publicamente sua orientação sexual, e seu amor secreto complica as coisas, especialmente para Henry.
A Amazon Studios e a Berlanti Productions garantiram os direitos cinematográficos do romance de McQuiston em um leilão realizado antes de seu lançamento, em maio de 2019, e, desde então, o livro passou mais de 20 semanas na lista de best-sellers do New York Times.
Mas as listas de best-sellers não transmitem totalmente a adoração que “Vermelho, Branco e Sangue Azul” conquistou no BookTok –a área do TikTok que adora literatura—, onde os fãs compartilham em massa sua obsessão pela história de amor escapista, e vídeos com a tag #redwhiteandroyalblue foram assistidos mais de 500 milhões de vezes.
Jacob Demlow, que frequentemente escreve sobre “Vermelho, Branco e Sangue Azul” em sua conta A Very Queer Book Club, disse que jogou seu exemplar para o outro lado da sala, de alegria, ao receber o livro.
“Eu não conseguia acreditar no que estava lendo. Eram todas aquelas situações padrão maravilhosas que os amantes de romance adoram desde sempre, mas com relação a um casal do qual parecia que eu poderia fazer parte”, disse Demlow, que calcula ter lido o romance pelo menos uma dúzia de vezes. “Eu cresci assistindo a filmes sobre a garota que se apaixona pelo príncipe, mas nunca tinha visto isso através de uma lente queer, até agora. Foi algo surpreendente, de uma forma que ainda não sei se consigo compreender totalmente.”
O filme, que estreou na Amazon Prime Video na sexta-feira passada (11), espera recriar esse entusiasmo na tela e representa a estreia na direção de López, um dramaturgo vencedor do Tony conhecido por escrever “A Herança”, além de escrever (com Amber Ruffin) a adaptação musical do filme “Quanto Mais Quente Melhor” para o teatro. López estava trabalhando nesses projetos em 2020 quando seu agente apresentou a ideia de transformar “Vermelho, Branco e Sangue Azul” em um musical de teatro.
“Eu li e disse: ‘Sim, claro, talvez. Mas vamos falar sobre o filme'”, lembrou López. “Lá pela página 50, eu sabia que queria ser a pessoa que faria esse filme.”
Depois de apresentar seu argumento aos produtores Greg Berlanti e Sarah Schechter, López assinou contrato para dirigir o filme e revisou o roteiro original de Ted Malawer. Ele escalou dois atores principais que haviam se destacado em romances da Netflix: Zakhar Perez, 31, que estrelou como Marco nas continuações de “A Barraca do Beijo”; e Galitzine, 28, que apareceu em “Continência ao Amor”, uma história romântica sobre militares produzida pelo serviço de streaming. Galitzine também interpretou o príncipe em “Cinderela”, da Amazon, contracenando com Camila Cabello.
Tanto para Zakhar Perez quanto para o diretor, a identidade birracial do personagem Alex tinha significado especial. López cresceu em Panama City, na Flórida, com seu pai porto-riquenho e sua mãe russo-polonesa, enquanto Zakhar Perez tem antepassados no México, no Oriente Médio e no Mediterrâneo e foi criado no noroeste de Indiana, onde ele disse que conhecia apenas uma outra família mexicana.
“Matthew e eu conversamos muito sobre a jornada dos ‘mestizos’”, disse Zakhar Perez em uma conversa por vídeo antes da greve do SAG-AFTRA, o sindicato dos atores americanos. “Quando você é parte mexicano e parte muitas outras coisas, não quero dizer que você seja esquecido, mas, no mundo de hoje, é como se a pessoa precisasse ser ou isso ou aquilo. Não há nada a meio caminho. Sou uma espécie de camaleão cultural.”
“Como um jovem latino queer, nunca li algo que se centralizasse em alguém como Alex”, disse López, ecoando a declaração de seu astro. “Se esse personagem tivesse sido apresentado a mim quando eu estava no final da adolescência ou no início dos 20 anos, talvez tivesse mudado minha maneira de pensar sobre mim mesmo.”
Durante o processo de audições, Zakhar Perez e Galitzine tiveram de realizar por vídeo seus testes de química, e só se conheceram pessoalmente no início dos ensaios, em Londres. Mas a natureza do roteiro significava que eles precisariam se sentir à vontade rapidamente para filmar diversas cenas de paixão, que foram supervisionadas pelo coordenador de intimidade Robbie Taylor Hunt.
“Nick e eu começamos a confiar um no outro muito rapidamente”, disse Zakhar Perez sobre Galitzine. “Tínhamos que criar uma tensão sexual que passasse da antipatia para a atração e o amor, e queríamos mostrar essa jornada por meio de momentos íntimos coreografados.”
No livro, McQuiston descreve as cenas amorosas de Alex e Henry no quarto —e na estrebaria e no quarto de hotel— em detalhes, e López disse que “nunca, jamais, se esquivou da sexualidade” na tela.
“Às vezes, são cenas extremamente famintas e às vezes são muito carinhosas”, disse Galitzine em uma conversa separada por telefone, antes da estreia. “Matthew sempre foi inflexível ao dizer que queria retratar o sexo gay de forma precisa, o que ele achava que talvez não fosse o caso em outros filmes LGBTQ+.”
Embora a única cena de sexo longa seja um momento emotivo cuidadosamente editado, e a única nudez seja um vislumbre de nádegas nuas, “Vermelho, Branco e Sangue Azul” foi proibido para menores de 17 anos desacompanhados dos pais e responsáveis, pela Motion Picture Association (MPAA).
López ficou surpreso: “Se tivéssemos atirado seis vezes no príncipe, provavelmente ainda teríamos obtido a classificação PG-13”, disse, acrescentando: “Se envolvesse um homem e uma mulher, eu me pergunto se o filme teria ou não recebido a mesma classificação etária”.
O cineasta Ira Sachs recentemente expressou confusão semelhante sobre a classificação NC-17 [proibido para menores de 17 anos] de seu novo filme “Passagens”, que também apresenta sexo gay. Em um comunicado, a MPAA disse à Associated Press: “A orientação sexual de um personagem ou personagens não é considerada como parte do processo de classificação”.
Nas semanas que antecederam o lançamento do filme, a expectativa continuou a crescer entre os fãs, juntamente com o receio de que ele não capturasse a magia do livro. Alguns se preocupavam com a seleção do elenco, a eliminação de vários personagens coadjuvantes ou a mudança de uma rainha da Inglaterra fictícia para um rei fictício que aparece em uma única cena, interpretado por Stephen Fry.
“Eu nunca conseguiria realizar totalmente a imagem desse livro que os milhões de pessoas que o amam individualmente têm em suas cabeças”, disse López. “Sabia desde o início”, ele também enfatizou, “que o filme seria bem-sucedido ou fracassaria com base, em parte, na convicção dos fãs de que a pessoa que o fez era fã do livro. E eu sou.”
Críticas mais amplas questionam a premissa da história em si e o fato de ser mais um romance gay que envolve angústia ao se assumir. Mas Demlow, do A Very Queer Book Club, tem uma visão diferente.
“Há muitas histórias sobre como as pessoas saíram do armário que precisam ser ouvidas, e também precisamos de mais histórias que não falem sobre essa questão”, ele disse. “Não é que precisemos de dose menor de alguma coisa. Na verdade, precisamos de dose maior de tudo.”
Tradução de Paulo Migliacci
Fonte: Folha de SP