Para fazer ‘Companheiros de Viagem’, o roteirista teve que se apaixonar


The New York Times

Ron Nyswaner, o roteirista indicado ao Oscar e ao Emmy, ainda se lembra de um encontro casual em uma praia há mais de 50 anos. Na época, um adolescente e um autodenominado “fanático por Jesus”, ele havia ido a Ocean City, Nova Jersey, para participar de uma conferência da Juventude para Cristo. Tarde da noite, ele disse, enquanto caminhava sozinho, viu “um cara lindo e musculoso” na areia.

Esse jovem o convidou para falar em línguas —era um convite para o êxtase religioso e nada mais. Nyswaner concordou. Ele me contou essa história durante o almoço em SoHo em uma tarde tempestuosa de setembro como uma forma de explicar que, para ele, “sexo e sagrado sempre estiveram unidos”.

Ele queria essa mesma união para “Companheiros de Viagem”, uma série que, nos Estados Unidos, estreou na sexta-feira (27) no Paramount+ e no canal Showtime neste domingo (29).

Alternando entre os anos 1950 e o final dos anos 80, “Companheiros de Viagem”, baseado no romance de 2007 de mesmo nome de Thomas Mallon, é um resumo da história queer do século 20 vista por meio de um relacionamento turbulento entre dois homens. Matt Bomer (“White Collar”, “Magic Mike”) estrela como Hawkins Fuller, Hawk para seus íntimos, um funcionário do Departamento de Estado. Jonathan Bailey (“Bridgerton“) interpreta Tim Laughlin, um ingênuo que bebe leite e ama a Deus e sonha em trabalhar para o senador Joseph McCarthy.

Enquanto eles atravessam as décadas —na cama, no amor— a Lavender Scare, o movimento de libertação gay e a crise da Aids acontecem ao redor e através deles.

Nyswaner, que estava vestido todo de preto, exceto pelo sobretudo bege, afirma não gostar de histórias de amor. “Eca!”, ele disse. Os dois anéis grossos que ele usava, lembranças de relacionamentos anteriores, podem ter contradito isso. Mas seu gênio reside em fazer o político parecer chocantemente íntimo. Apesar de suas muitas audiências no Congresso, “Companheiros de Viagem” é uma história de amor, ilustrada com algumas das cenas de sexo queer mais intensas da televisão. Da primeira vez que Nyswaner leu o romance, ele se apaixonou por Tim e Hawk. Foi esse amor —sexual, sagrado— que o inspirou a fazer a série, a primeira que ele criou para a televisão.

Nyswaner, de 67 anos, cresceu em uma pequena cidade da Pensilvânia. Gay e no armário, ele era um estranho quando criança, um observador. Ele acredita que isso foi o que o tornou um escritor. Depois de se formar na Universidade de Pittsburgh, ele se matriculou na escola de cinema da Columbia. Ainda estudante lá, ele entregou um roteiro ao diretor Jonathan Demme. Demme comprou os direitos, e Nyswaner se sustenta como escritor desde então.

Seu primeiro grande sucesso veio em 1993 com “Filadélfia”, dirigido por Demme, a história de Andrew Beckett (Tom Hanks), um advogado que acredita ter sido demitido injustamente de seu escritório por causa de seu diagnóstico de Aids (Nyswaner, cujo roteiro lhe rendeu uma indicação ao Oscar, faz uma participação especial em uma cena de festa vestido como um padre).

Naquela época, Nyswaner estava no auge de sua dependência de drogas e álcool. Nos cinco anos após o lançamento do filme, recém-famoso e com dinheiro, sua dependência piorou.

“Eu me dediquei à cocaína, ao álcool e ao sexo, com resultados trágicos”, ele disse. Ele detalha essa tragédia, que envolve o suicídio de uma trabalhadora sexual, em suas memórias de 2004, “Dias Azuis, Noites Negras”.

Ele estava sob pressão em Hollywood naquela época. Mas ele compareceu a mais de uma reunião sob efeito de metanfetaminas, e a pressão se dissipou. O que não o incomodou especialmente. Tendo encontrado sucesso cedo, ele raramente foi influenciado pelas demandas do mercado. “Eu sempre quis escrever o que eu queria”, ele disse.

Recém-sóbrio, ele provou isso. Ele escreveu o filme de “true crime” de 2003 “Um Amor na Trincheira”, do Showtime, sobre o relacionamento de um soldado do exército com uma artista de cabaré transgênero, e seguiu com a adaptação de 2006 do romance condenado de W. Somerset Maugham, “O Véu Pintado”. Nenhum deles foi destinado ao sucesso mainstream, mas essas obras tinham a desolação que ele amava, a intensidade apaixonada.

Em 2012, sua equipe de gerenciamento perguntou o que ele queria fazer em seguida. “Me tirem de casa”, ele disse a eles. Ele havia passado duas décadas morando no norte do estado de Nova York. Agora ele se viu desejando a agitação de uma cidade grande e a camaradagem de uma sala de roteiristas. Embora já tivesse comprado os direitos de “Companheiros de Viagem”, ele deixou o projeto em segundo plano para se mudar para Los Angeles e se juntar a duas séries do Showtime: primeiro o noir vibrante “Ray Donovan” e depois “Homeland”, o emocionante thriller de espionagem. Em 2018, quando seu tempo em “Homeland” terminou, ele se sentiu pronto para se dedicar a “Companheiros de Viagem”.

Em “Companheiros de Viagem”, Nyswaner expande sobre os temas que definem grande parte de seu trabalho cinematográfico —as maneiras pelas quais o desejo, o sexo e os segredos se intersectam com a lei. Na série, os personagens e eventos históricos são meticulosamente pesquisados (há talvez algumas falhas estéticas —os homens realmente se exercitavam tanto nos anos 1950?). Mas Nyswaner queria oferecer algo mais do que uma lição de história. Hawk, Tim e os outros personagens queer da série estão intimamente envolvidos nessa história, e eles não são meros espectadores e vítimas. Às vezes, eles são agressores.

“A melhor coisa que você pode fazer com qualquer personagem marginalizado é torná-los tão humanos e complicados quanto qualquer outro personagem heterossexual que está por aí no mundo”, disse ele.

Muitas dessas complicações são reveladas nas cenas de sexo. Trinta anos atrás, “Filadélfia” recebeu críticas por evitar a sexualidade gay. “Companheiros de Viagem” não é tão tímido. “Talvez eu tenha compensado demais”, disse ele, rindo.

Nyswaner, que tem algo de provocador, descreveu uma cena no final de “Companheiros de Viagem”, um ménage à trois que leva a um colapso nervoso, como “muito eu” e “uma das minhas maiores conquistas” (para essa cena, ele educou o diretor sobre o uso de nitrito de amila).

Se essas cenas não são especialmente gráficas, elas são incomumente específicas em seu mapeamento de poder e desejo. Nyswaner tinha regras para essas cenas, que eram cuidadosamente coreografadas e roteirizadas. Cada uma delas tinha que fazer avançar a história. Cada uma delas tinha que dramatizar uma troca de poder. E nenhum ato poderia ser repetido, o que convidava à criatividade nos episódios posteriores.

Os personagens queer são interpretados por atores que se identificam abertamente como queer. “Não era um requisito, mas certamente foi um forte motivador para nós”, disse Nyswaner. Ele acredita que a escolha do elenco pode ter contribuído para a veracidade e intensidade dessas cenas. “Eu realmente acho que pode ter feito uma diferença e deixado todos mais confortáveis”, disse ele.

Nyswaner não tem certeza se escrever sobre personagens gays é um caminho que ele escolheu para si mesmo ou um caminho que o sucesso de “Filadélfia” abriu para ele. De qualquer forma, ele está feliz em trilhá-lo.

“Eu amo, amo, amo ser um homem gay”, ele me disse durante o almoço. “Eu gosto de estar um pouco à margem de tudo.” Ele se preocupa com o estado dos direitos LGBTQ, mas sempre gostou dessa sensação de ser um outsider. “Fora da lei” foi outro termo que ele usou.

Ele não está namorando ninguém no momento. Sua preferência, ele disse, é por “homens inadequados. Alguns deles são bem deliciosos”. Colegas o incentivam a baixar um aplicativo de namoro, mas ele tem resistido. Nos últimos anos, seu relacionamento principal tem sido com Tim e Hawk, os personagens por quem ele se apaixonou há uma década.

“Eu queria viver dentro desse relacionamento”, ele disse. “E eu vivi.”

Fonte: Folha de SP

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